A solidariedade está a morrer
No princípio era o amor (a solidariedade), a o amor não era instituído. E por essa razão cresceram as obras e apareceram as muitas formas de acção social. A solidariedade cresceu e reinou… Por ela vimos nascerem escolas, hospitais, creches e lares… tantas e tantas formas de acção social. Mas um dia alguém quis tornar a solidariedade obrigatória. Foi inscrita nos manuais das escolas, nas cartilhas da aprendizagem, e chegou mesmo a entrar nas constituições e códigos de vária ordem. Passaram muitos anos e chegamos ao ponto em que a solidariedade é norma e regra por toda a parte. E por ironia do destino, vemos diminuírem as escolas, os hospitais, as creches e os lares… A solidariedade está a morrer.
Um dos preços a pagar pela laicização do estado, é a crescente burocratização da vida pública, mesmo no que ela tem de mais espontâneo e original. Hoje, para eu puder ajudar um pobre que verdadeiramente necessita da minha ajuda, ajuda que eu posso dar-lhe e quero dar-lhe, vejo-me obrigado a preencher uma série de papéis e documentos, preciso de dar tantos esclarecimentos e informações… que acabo por perder a vontade de dar. Eu queria dar simplesmente pelo gesto em si; e querem que eu dê por obrigação e imposição. A esmola deixou de ser fruto do amor, para ser fruto da lei. E nunca será um amor autêntico e genuíno, aquele que é forçado.
Vem isto a propósito do dia da Cáritas que a Igreja recorda no próximo domingo. Uma instituição que nasceu da vontade genuína de ajudar os mais necessitados; uma instituição que pôs mãos à obra diante das necessidades efectivas das pessoas. Pouco a pouco a instituição cresceu; e hoje as próprias Cáritas, vêm-se a braços com as tentativas dos tais estados laicos, no sentido de lhe tirarem o que as define: a caridade. Será que não há mais espaço para a caridade espontânea, livre e genuína? Será que as leis que regulamentam a caridade (que é bom que existam) têm de ser um entrave à prática do amor? Será tudo isto uma fatalidade, ou não estará a situação a reclamar uma revisão de estatutos?
Sem nos apercebermos estamos a tornar-nos numa sociedade e numa espécie onde o amor deixa de existir para dar lugar apenas e unicamente à lei. Estamos a tornar-nos burocráticos, frios e insensíveis, enquanto se vai perdendo o calor, a liberdade e a sensibilidade. Não me agrada esta sociedade assim construída, porque ela mata o que há em nós de mais profundo e original: o humanismo. Não creio que seja a razão a definir a minha humanidade, mas sim o amor. Sou humano não porque penso, mas porque amo… não me tirem o que há em mim de mais original, impondo-me prescrições e burocracias que me fazem esquecer o que efectivamente sou.
Fomos falar com os que por amor, por vocação e por dedicação, dão continuidade ao verdadeiro espírito da solidariedade, e procuramos perceber as suas dificuldades numa sociedade que não quer entender os gestos gratuitos, voluntários e genuínos. Partilhámos com eles a mágoa de quem vê morrer a flor mais bela do jardim e deixamo-nos contaminar pela sua esperança, dedicação e fé num futuro feito de melhores dias.
[Edição Nº 4646, 8 de Março de 2007]
Etiquetas: editorial